terça-feira, 1 de junho de 2010

OS BICIGRINOS






Refletindo sobre o Caminho









No centro de Santiago da Compostela existe uma praça. Homenageia a Miguel de Cervantes Saavedra, imortalizador de duas figuras quiças das mais conhecidas da literatura mundial: Dom Quixote e Sancho Pança.

Apesar de grande parte das peripécias do cavaleiro andante se passar na Mancha, a informação dada incorretamente no escritório de turismo dava conta que Cervantes era natural de Santiago.

Não sei portanto se Cervantes se inspirou ao criar seus personagens na horda de peregrinos que já naquela época invadiam Santiago, mas deveria!

Ao voltar no dia seguinte à praça da Catedral e mesmo passando pela porta do Centro de Apoio ao Peregrino, onde se retira a Compostelana a figura de Quixote me veio a cabeça.

Parecemos nós peregrinos convictos ou não um bando de Dom Quixotes. Deverei batizar minha bicicleta de Rocinante ou quem sabe rebatizar a Célia de Quixote ou Dulcineia e aspergir-me um pouco de água benta e nomear-me de Sancho Pança.

Devo fazer minha lança o meu cajado e meu escudo uma vieira!

Como enfrentar um problema crucial. Tanto em Portugal como em Espanha não faltaram aqueles geradores de eletricidade movidos a energia eólica: os modernos moinhos de vento. Como enfrenta-los! Haja lança para alcança-los ou devo simplesmente escala-los. E lá em cima escolho espada ou o que (obs: este maldito teclado não tem ponto de interrogação).

Mas a verdade permanece: os peregrinos correm atrás de um sonho. O sonho da descoberta de uma luz seja ela propiciada pelo sentimento religioso ou por uma fé difusa.

Shirley MacLaine afirma que o caminho de Santiago é a busca de um caminho interior.

Rogério Leite que vem acompanhando o meu blog escreveu-me este comentário: “Uma das coisas mais importantes de caminho é você se encontrar consigo mesmo, poder rever sua vida até aquele momento e como você a quer viver depois dele. É uma encruzilhada. Não sei como isto acontece pedalando, quando a gente tem de ficar atento a buracos, problemas, carros, etc. Andando, eu entrei em alfa lá pelo meio do caminho, antes de Leon, nas extensas planícies do norte da Espanha. Foi um momento especial para mim, guardado muito ciosamente. Espero que vc tenha um momento assim PEDALANDO. E espero que vc deixe toda a sua ansiedade de lado na hora em que der a primeira pedalada. Esqueça seus problemas, o que ficou em casa, procurando tempo e espaço para vc se ver, se encontrar. Boa viagem, peregrino! Que ELE o traga de volta renovado NELE, e que seu anjo o proteja!”

Acredito que o caminho é uma alucinação coletiva, uma auto sugestão de redenção que foi nos imposta secularmente. Coletivizou-se, a Santa Igreja perdeu o seu domínio. Foi apropriado pelo Departamento de Turismo espanhol e pelas nossas “in” ou “sub” consciências que ainda crêem que o martírio ou o esforço para fé nos conduz ao auto conhecimento.

Trilhar o Caminho de Santiago é empunhando um cajado buscar o “eu” carregando nas costas o divã deixando o terapeuta no consultório, afinal o terapeuta neste caso significa excesso de peso.

Que me perdoem os crédulos mas eu ainda acho que a reflexão está dentro de nós e para chegarmos a nossa verdade interior o maior passo é: sair da frente da televisão e refletir um pouco mais sobre a nossa vida!

sábado, 29 de maio de 2010

Similitudes, micos e outras direcções

PORTUNHOL EM PORTUGAL

Quando um argentino, uruguaio, espanhol ou qualquer outro similar chega a um brasileiro pedindo informações, “duela a quem duela” como diria o Collor de triste memória, nos armamos de uma enorme cara de pau e respondemos em um bom portunhol, mesmo que nosso interlocutor entendesse melhor o português.

Nossos irmãos de além mar fazem algo similar.

Inúmeras vezes, e não foram poucas, perguntei em Portugal alguma informação em Português e confesso para meu espanto, que me respondiam em inglês, francês e até italiano.

Quantas vezes tive que alerta-lo que “please, speake portuguese with me!”

Parece que não se conformam de me responder em língua mãe.

Confesso que muitas vezes fiquei orgulhoso com os elogios do excelente português que falava, a despeito de eu ter previamente me identificado como brasileiro.

HOSPEDANDO-SE EM SANTIAGO.

Chegando a Santiago da Compostela o primeiro lugar que nossa tendência peregrina nos obriga a ir, mesmo eu um peregrino de araque, é dirigir-se a Catedral para moralmente sentir que chegamos, atingimos nossos objetivos.

Após é ir atrás da Compostelana, para sacramentarmos documentalmente que chegamos e ter um papel para exibirmos orgulhosos para os amigos e comentar nossos feitos.

Depois é buscar um lugar para hospedarmos. Fomos abordados por uma série de pessoas oferecendo alojamentos baratos. Devem receber comissão pelos incautos que encaminham.

Fomos abordados por uma senhora baixinha, vestida de preto, com maior jeitão de beata que nos ofereceu um quarto com banheiro no local onde habitava.

Fiquei curioso e fomos seguindo a senhorinha para ver o que tinha a oferecer.

Levou-nos a um apartamento, onde vive e acabamos por ficar no quarto por 35 euros a noite.

Perguntei a ela, Sra Pastora, se ela sempre saia a rua para arregimentar hospedes para seu apartamento. Ela respondeu meio indignada que não, estava apenas voltando da igreja e nos viu e suspeitou que procurávamos quarto.

Dá para acreditar!


OUTRAS DIRECÇÕES

Uma coisa que me chamou a atenção em Portugal, principalmente nas rotundas, vulgo rotatória, é que além das diversas placas que assinalam as direções a seguir, existe uma que invariavelmente assinala “outras direcções”.

Perguntava-me o que significaria esta placa e cheguei a conclusão que estão a dizer “se você não sabe aonde quer ir, vá por aí”.

AINDA SOBRE OUTRAS DIRECÇÕES

Pensando em usar este tema como parte do título de uma postagem, como estou a fazer agora, resolvi parar e fotografar uma placa com estes dizeres.

Vínhamos pedalando por ciclovia a beira da calçada em Viana do Castelo quando vi uma placa. Parei para sacar a minha máquina fotográfica que levo na bolsa de meu guidão.

A Célia, estabanada ao me ver parar compreendeu que era para atravessar a rua e assim o fez a uns poucos metros antes de uma faixa de pedestres.

Imediatamente um guarda local usou seu assobio, a parou e começou a repreende-la.

Ela obviamente usou o surrado argumento de que era brasileira, etc e tal...

Oportunisticamente aproveitou para mandar que eu registrasse o momento fotografando e avisou o guarda que enviaria a foto para o Brasil.

O guarda alegou que não poderia pois achava que era muito feio. Célia o contradisse dizendo que não, que ele era bem bonitinho.

O guarda se ajeitou, colocou o quepe no lugar e pousou para a fotografia.

TOMAR

Estávamos em Tomar, no domingo. Já tinham visitado a cidade e queríamos voltar para Leiria, onde tínhamos pernoitado e deixado às bicicletas.

O ônibus, aqui conhecido como autocar, só passaria as 17:40 hs. Teríamos que baldear em Batalha e pegar outro para Leiria.

Ficariamos umas 3 horas sem nada a fazer.

Matutando em encontrar alternativas, parados num ponto de ônibus, a Célia resolveu inquirir um motorista de linha, que tinha parado no ponto, quando passaria o próximo ônibus a Leiria.

Ele confirmou o horário que tínhamos e ainda inconformados resolvemos ir até a rodoviária na esperança de existir encontrar uma outra alternativa. Quem sabe ir a Fátima e de lá chegarmos ao nosso destino.

Caminhamos até a rodoviária. Lá havia um monte de pessoas jogando dominó.

A Célia perguntou a um dos jogadores qual seria a melhor forma de ir a Tomar.

O cidadão quase aos berros respondeu:

- E eu não falei a senhora que o ônibus só passa as 17:40.

Era o motorista que já nos tinha dado a informação antes e estava a jogar com os amigos antes de voltar a circular.

AFINANDO A PONTARIA

Estávamos na simpática Belmonte e resolvi parar na igreja local solicitar o carimbo para a minha credencial de peregrino.

O padre local estava numa sala ao lado da igreja discutindo em voz meio exasperada com dois homens o que supus serem problemas da comuidade.

Meio que desistindo do carimbo, resolvi seguir meu caminho quando já na rua o padre pediu que eu voltasse.

Bem, voltei e o padre me levou ao salão paroquial ao lado da igreja.

Lá estava a funcionar uma creche.

Carimbou e aí eu pedi para ir ao banheiro para tirar “água do joelho”. Ele me levou até o banheiro.

Ao fechar a porta me deparei com uma privada pequenininha, do tamanho de um pinico.

Tive que afinar a pontaria pois estava assaz apertado.

Terminado, orgulhosamente sem conspurcar o chão, um cidadão abre a porta ao lado saindo do banheiro dos adultos que tinha uma privada tamanho decente.




QUANDO ME REFORMAR

Quando nos hospedamos no hotel em Caldas da Rainha, a simpática dona do estabelecimento perguntou de onde éramos.

Ao dizermos que éramos do Brasil, de São Paulo ela manifestou o desejo de conhecer nossa terra.

Desafiando-a perguntei porque não fazia logo esta viagem. Ela respondeu que não poderia, só depois de se reformar.

Eu, energúmeno pensei que “se reformar” seria fazer alguma espécie de plástica e galantemente falei que ela estava muito bonita do jeito que estava, que não precisaria mudar nada.

Ela ainda bem que não entendeu a minha enorme gafe. Arrematou dizendo que o hotel lhe tomava muito tempo e iria ao Brasil depois de parar de trabalhar.

Reformar em Portugal significa aposentar-se!

A Chegada






Em Padron, nossa última parada no Caminho de Santiago, choveu a noite toda. Ao iniciarmos a nossa jornada ainda fazia frio e prenunciava que teríamos um dia árduo pela frente.

Era nosso tributo, nosso derradeiro esforço para completarmos nosso objetivo. Tínhamos a opção de seguir pela estrada nacional e com isto os riscos de lama, trilhas escorregadias ou falta de abrigo com chuvas fortes do caminho poderiam ser minimizadas.

Estoicamente decidimos seguir pela rota peregrina, afinal apenas um pouco mais de 20 kms nos separava da catedral.

Mentalizados das dificuldades, fomos num pedal leve, 10 km a hora.

Lentamente começamos a subir por dentro da mata, sem dificuldade, guardando energias para o final.

Agoniado olhava para o ciclo computador verificando a distância percorrida e o mapa com a altimetria. Subíamos mas sem esforço!

Saímos do bosque e nos deparamos com uma cidade. A Célia com seu parco senso de orientação acreditava que a grande subida se daria a seguir. Eu olhava ao redor e percebia que estávamos no topo, não havia mais montanhas próximas e a quilometragem sinalizava que a grande SUBIDA tinha ficado para trás.

Descemos uma ladeira por entre umas casas, encontramos um viaduto, as inexoráveis setas amarelas e começamos a subir para a cidade de Santiago.

A GRANDE SUBIDA era um mito! Um conto da carochinha! Que decepção, tantos temores, mentalizações e estoicismos para nada. O que vou contar para os amigos, os netos, os filhos! E o sentimento de superação de seu limite, a dor peregrina onde ficaram!

Não importa. CHEGAMOS! Rodear com a bicicleta a praça da Catedral dá um enorme sentimento de euforia, de algo realmente concluído.

Ver dezenas de outros realmente abnegados, mancando empunhando seus cajados, guias de caminhada, pesadas mochilas, cabaças e vieiras, queimados pelo sol confere a Santiago uma qualidade especial.

Ao receber a Compostelana, não da igreja, mas de uma agência governamental de turismo percebi que enorme grife é a peregrinação, move milhares de euros.

Dezenas de peregrinos perambulam pela cidade dando a cidade um ar de woodstock católica. Não conheço Roma mas Santiago da Compostela é uma Jerusalém punk!

Santiago da Compostela é a constatação de que o sonho não acabou, se continua a dormir em slepping bag e sonhando ideais pelos seus caminhos.


OBS: A medida do possível continuarei a refletir sobre esta experiência neste blog.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Pelas Rias chegando quase lá!






De Oia começamos a margear a Ria de Vigo.

“Geográficamente, una de las peculiaridades de Galicia es la presencia de las rías, indentaciones en la costa en las que el mar anegó valles fluviales por descenso del nivel terrestre (ascenso relativo del nivel marino)”

Bem, conclusão apaixonamo-nos pela costa da Galicia. Em pleno domingão galego, com um monte de ciclistas a pedalar em frenesi pelas estradas, entramos em Vigo.

Se nossa intenção era ir para a Redondela e com isto abandonar aquela costa maravilhosa, de Vigo pegamos um barco que nos levou ao outro lado da ria, uma cidade conhecida como Cangas.

De Cangas fomos a Hui onde pousamos num hotel de nome bem galego: Stop.


Hui tem uma escultura do Cristo sendo tirado da cruz, que fica na frente da igreja local que é maravilhosa.

De Hui, num pedal rápido chegamos a Pontevedra, margeando a Ria de mesmo nome.

Pontevedra é outra cidade inesquecível, medieval e pulsante.

Daí, há poucos kms de Santiago, tínhamos que cair no clássico caminho português de peregrinação.

Como vínhamos carregando muita bagagem já que prosseguiremos nossa viagem pela Espanha em veiculo alugado, deixamos parte significativa dela em Pontevedra, para busca-la mais tarde.

Saímos de Pontevedra relativamente leves, debaixo de chuva preparados para a pauleira que nossos mapas indicavam em termos de altimetria.

Chegamos a Padron, ensopados, intactos e admirados com a facilidade com que vencemos este percurso. Até o momento temos 680 km de pedal em solo lusitano. 830 kms de pedal na península ibérica e acredite, há somente 20 kms de Santiago da Compostela, onde amanhã enfrentaremos a grande subida.

Alguns personagens do Caminho












Entrando na Espanha







Escrevo agora em Óia (sábado), porém consegui postar somente na terça.

De Esposende a Viana do Castelo foram apenas 30 km de pedal.

Contribuiu também para nossa decisão o calor infernal. 32 graus num dia sem nenhuma brisa.

Viana é peculiar, não no aspecto urbanístico. Parece com outras que já passamos, mas o que a torna diferente é um certo ufanismo.

Viana tem o funicular mais longo da Europa, o que vence maior altitude e sobretudo a vista da cidade no Mosteiro de Santa Luzia é considerada pelos Vianenses como uma das mais belas do mundo. Vale a pena funicular para constatar que você consegue listar no mínimo 10 paisagens mais nelas que a apregoada.

Em menos de nada estávamos em Caminha (20 km) e de ferry boat atravessamos 0 Minho entrando na Espanha pela cidade de La Guardiã.

Já a partir de Viana a paisagem mudou mais verde e a estrada deixava de ser totalmente plana. Na Espanha a paisagem modificou-se radicalmente. Pedala-se vendo o mar mas uns 50 metros acima margeando montanhas.

Chegando a igreja de Oia, havia sinais de que de noite rolaria uma festas. Quiosques, palco armado, teste de som. Cheguei a pensar em ficar na vila e quase fiquei. Sabadão em Oia com musica galega deve ser inesquecível. A propósito, não me recordo em qual sítio (lugar aqui na Espanha) paramos para um café e vendo a televisão quem eu ouço e vejo cantando: Zezé de Camargo e Luciano.

Bem voltemos a Oia. Na porra da praça onde rolaria a festa, meu pneu furou. Precavido trouxe 2 câmaras sobressalentes. Como não descobri o maldito prego, detonei impávido as duas. Mas aí mais paciente, resoluto e puto, fui passando o dedo até me ferir e descobrir o maldito. Claro que os remendos eram velhos ou eu muito ineficiente. Conclusão, encontrei um simpático senhor que me levou a um borracheiro que solucionou o problema.

Seguimos mais alguns kms até pousar. O hotel pertence a dona Lola, que tem uma filha Ana, poeta, cozinheira, casada com um caminhoneiro, que toca sei lá o que na banda da igreja local e seu filho integra-se a banda como tocador de tuba, e vive brigando com a mãe mas se querem muito e vive na região que produz os melhores mariscos do mundo, que não viveria em vigo por nada neste mundo e que seu cachorro mata todas as galinhas... ah, e a filha se chama Carmen!

Te juro, parecia contando tudo isto de um só fôlego, num tom de voz tonitroante, um personagem de um filme de Almodóvar.

No final, jantamos como reis, outra hora falarei deste jantar.